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A tutela coletiva do Direito do Trabalho frente as propostas e medidas reformistas legislativas, constitucionais e jurisprudenciais

"O cenário de crise econômica e ética vivenciado pelo Brasil evidencia um desequilíbrio conjuntural, um estado de incerteza, de declínio. Os tempos de crise costumam representar períodos de ruptura: para o bem ou para o mal. A quebra total de um sistema é plenamente possível, mas o seu fortalecimento também é uma alternativa."

Por Cirlene Luiza Zimmermann[1]

Ninguém duvide dos tempos difíceis que estamos vivendo.

Na madrugada deste dia 30/11/2016, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou emenda ao PL 4.850/2016 (“Dez Medidas contra a Corrupção”), que acrescentou um título no texto para definir crimes de abuso de autoridade de Magistrados e Membros do Ministério Público, com tipos extremamente abertos e genéricos.

Trata-se de evidente retaliação aos Membros da Magistratura e do Ministério Público, especialmente porque inserida no Projeto de Lei das “Dez Medidas contra a Corrupção”, de iniciativa do Ministério Público Federal, que colheu mais de dois milhões de assinaturas, por emenda de Plenário, ou seja, sem a possibilidade de qualquer discussão da matéria com a sociedade.

Essa medida retaliatória cerceia a atividade constitucionalmente incumbida aos juízes e membros do MP, de garantir direitos fundamentais como a cidadania, a democracia e a dignidade da pessoa humana e de defender toda a ordem jurídica, pois criminaliza a sua atuação. Se os Magistrados e membros do Ministério Público se sentirem acuados para defender a ordem jurídica, em razão da ingerência indevida dos demais poderes em sua atuação, passaremos a ser uma democracia manca, uma sociedade incapaz de garantir justiça, liberdade e solidariedade.

Nesse compasso de tristeza, perplexidade e indignação, inicio minha fala, que será uma fala em prol da luta.

A realização deste I Congresso Rondoniense de Carreiras Jurídicas decorreu de luta. Luta no sentido de esforço, de empenho, de dedicação, de diligência, de zelo, de muito trabalho por parte dos organizadores para realização desse evento. Um evento que objetivou reunir profissionais de todas as carreiras jurídicas para discutir esses tempos difíceis e seus impactos no Direito.

Os organizadores que aqui se encontram sabem do que estou falando. Imaginem os senhores a dificuldade que é organizar um evento dessa envergadura.

Agora concebam o tamanho da luta quando se trata de batalhar por direitos sociais, de construir uma ordem jurídica trabalhista. Essa luta não pode ser ignorada, desprezada, vilipendiada! Os discursos e as ações que visam ao rebaixamento dos direitos sociais e individuais indisponíveis dos trabalhadores e de toda ordem jurídica trabalhista não pode ser tolerado por quem tem um mínimo de respeito por essa história de luta.

O Ministério Público do Trabalho tem por atribuição constitucional defender a ordem jurídica trabalhista e os direitos sociais e individuais indisponíveis dos trabalhadores.

Para nortear a sua atuação, a instituição pontuou oito áreas prioritárias e instituiu coordenadorias estratégias para defender o meio ambiente do trabalho seguro e salubre (CODEMAT), evitar as fraudes nas relações de trabalho (CONAFRET), combater a exploração do trabalho da criança e do adolescente (COORDINFANCIA), erradicar o trabalho escravo (CONAETE), combater a discriminação (COORDIGUALDADE), promover a liberdade sindical (CONALIS), proteger o trabalho portuário e aquaviário (CONATPA) e combater as irregularidades trabalhistas na administração pública (CONAP).

O cenário de crise econômica e ética vivenciado pelo Brasil evidencia um desequilíbrio conjuntural, um estado de incerteza, de declínio. Os tempos de crise costumam representar períodos de ruptura: para o bem ou para o mal. A quebra total de um sistema é plenamente possível, mas o seu fortalecimento também é uma alternativa.

Se formos capazes de organizar nossa resistência, com a participação dos principais interessados (os trabalhadores), confrontando oposições que questionam a própria necessidade do Direito do Trabalho, haverá possibilidade real de revigoramento do sistema e não mera sobrevida.

O MPT está resistindo.

O ataque aos fundamentos do Direito do Trabalho, em especial, à CLT, evidenciam desconhecimento ou ignorância premeditada. Fala-se da CLT como se fosse uma lei da primeira metade do século XX e que não teria mais qualquer sentido nos tempos atuais. Aduz-se não haver mais a necessidade de proteger qualquer hipossuficiente, pois o trabalhador hoje é instruído, conhece mais os seus direitos do que o próprio patrão. Ora, não sejamos ingênuos. O desequilíbrio econômico entre as partes da relação de trabalho é real e a CLT, reiteradamente modernizada e lida pela ótica da Constituição de 1988, está aí para estabelecer equidade jurídica.

A proposta de lei que visa fazer prevalecer o negociado sobre o legislado parte da premissa de que, ainda que os trabalhadores sejam hipossuficientes isoladamente, não o são coletivamente, pois como entes coletivos, os sindicatos têm aptidão à negociação com o capital de igual para igual.

Ocorre que os sindicatos no Brasil, em sua maioria, não têm representatividade, não possuem gestão transparente e muito menos efetiva capacidade negocial. Basta um número estatístico para comprovar isso: mais de 50% dos 16.000 sindicatos existentes no país jamais celebraram uma negociação coletiva. São sindicatos descolados da categoria. Como poderão negociar em seu nome para renunciar a direitos constitucionalmente garantidos? Ressalte-se que o respeito à negociação coletiva é fundamento de nossa Constituição, desde que importe em melhoria das condições sociais dos trabalhadores e não renúncia ao patamar mínimo de dignidade garantido pelo nosso constituinte (no qual se incluem os direitos ao meio ambiente do trabalho sem riscos, a limitação da jornada e a não discriminação negativa, por exemplo).

Nesse aspecto, recordo-me do ensinamento do pensador francês Lacordaire: “Na luta entre fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta". A liberdade expressa na proposta de prevalência generalizada do negociado sobre o legislado somente gerará exploração, além de fragilizar ainda mais a estrutura sindical brasileira.

Contudo, o patamar mínimo de direitos sociais garantido pelas normas também está sendo afrontado: há propostas para redução da idade mínima para o trabalho de 16 para 14 anos (PEC 18/2011), quando a Convenção 138 da OIT, ratificada pelo Brasil e em pleno vigor, prevê a idade de 15 anos; de limitação do conceito de trabalho escravo (PLS 43/2013); de sustação da Norma Regulamentadora nº 12 (NR 12) do Ministério do Trabalho (PDS 43), que trata da proteção de máquinas e equipamentos, para evitar acidentes do trabalho, e de liberação da terceirização ampla e irrestrita.

A Emenda Constitucional 81/2014 alterou o art. 243, dispondo que as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde for encontrada exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, sendo, ainda, todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência da exploração de trabalho escravo confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei.

O passo à frente veio seguido de dois passos para trás, pois está em tramitação projeto de lei que altera o art. 149 do Código Penal para retirar a jornada exaustiva e o trabalho degradante do conceito de trabalho em condições análogas à escravidão.

Já a tentativa de sustação da NR 12 é outra medida retrógrada e inconvencional, eis que se trata de norma de segurança no trabalho que foi construída com base no diálogo existente no sistema tripartite paritário (governo, trabalhadores e empregadores), fundamentado na Convenção 144 da OIT, e que não pode ser derrubada por meio de medida de exceção tão extremada, especialmente porque seu principal objetivo era retirar o Brasil de uma posição nada elogiosa de ser um dos países recordistas mundiais de acidentes de trabalho, registrando mais de 700.000 por ano (quase 2.000 por dia, 80 por hora), sendo que, de 2011 a 2015, ocorreram cerca de 70.000 acidentes, com CAT registrada, por ano, envolvendo fraturas, amputações e óbitos com máquinas. Uma tragédia social que onera os cofres públicos em termos de saúde e previdência, mas também afeta a produtividade e a competitividade da iniciativa privada brasileira, já que os custos desses afastamentos acabam sendo incluídos no preço final dos nossos produtos.

Por fim, faço referência às propostas de liberação da terceirização ampla e irrestrita, que permitirá que, no Brasil, o capital exerça suas atividades econômicas sem um dos seus elementos essenciais, o trabalho, visto que o trabalho será desempenhado pela mão de obra disponível e descartável e não por um trabalhador vinculado ao capital.

A transformação do trabalho em mercadoria será a mais triste realidade, como já ocorre com mais de 12 milhões de brasileiros, que representam 27% da população empregada.

Observe-se que essa autorização da terceirização sem limites, em razão das ações de resistência, tem ocorrido por meio de pequenas alterações, que poderão promover a autorização generalizada, como é o caso da lei do salão parceiro (Lei nº 13.352, de 27 de outubro de 2016) e da própria questão do Uber (não sendo demais lembrar que um país extremamente liberal, como o Reino Unido, considerou, recentemente, que os motoristas do Uber não são autônomos, mas empregados).

A terceirização sem limites gera inúmeros efeitos danosos aos trabalhadores, a saber:

  1. descaso com as condições de saúde e segurança no trabalho, decorrentes, sobretudo, da falta de investimento em medidas de saúde, segurança e treinamento e a pouca capacidade técnica e econômica das empresas contratadas, que são os meios possíveis de baratear a mão de obra. Como consequência, setores como o da construção civil, o petrolífero e o elétrico estão entre os campeões de acidentes de trabalho entre terceirizados, sendo que, apenas em 2011, das 79 mortes ocorridas no setor elétrico, 61 foram de trabalhadores terceirizados;

  2. redução de direitos, seja em termos de remuneração, que é cerca de 30% mais baixa (chegando a cúmulos de 75%), seja com a exigência de jornadas excessivas ou superiores aos limites legais, sendo que a jornada de trabalho semanal do terceirizado costuma ser, em média, de três horas a mais do que a dos trabalhadores diretos;

  3. discriminação, pois a redução do número de empregados das grandes empresas, com a proliferação da demanda em inúmeras pequenas contratadas, impede a inclusão social de pessoas com deficiência no mercado de trabalho, visto que somente as empresas com mais de cem funcionários têm obrigação legal de contratar pessoas com deficiência ou reabilitadas, nos termos do art. 93 da Lei nº 8.213/91;

  4. maior rotatividade no emprego, especialmente pela alteração do empregador formal (mas não do empregador real); e

  5. dispersão e falta da representatividade sindical: agravando o quadro de desmobilização dos trabalhadores, que terão ainda menos identificação com a empresa e a categoria.

A terceirização jamais objetivou criar mais empregos, mas apenas tornar os postos de trabalho mais precários, além de, no âmbito da administração pública, permitir à burla ao princípio da impessoalidade, que exige a realização de concurso público para contratação de pessoal.

Diante disso, imperioso abandonar a ilusão de que as reformas trabalhistas que vêm sendo propostas, inclusive por meio de ataques promovidos pelo próprio Poder Judiciário (leia-se, Supremo Tribunal Federal), vão tirar o Brasil da crise. Não foi a garantia de direitos sociais que colocou o Brasil nessa situação, de modo que não será a sua retirada que reconduzirá o país ao rumo do crescimento econômico. O que gera crescimento econômico é o aumento da demanda, sendo que a redução dos custos da mão de obra, fatalmente, reduzirá a demanda, pois o trabalhador terá menos renda para consumir.

[1]Procuradora do Trabalho no Ministério Público do Trabalho e Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul.

 

 

 

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